Estamos há muitos meses privados da socialização e uma das coisas que mais me faz falta são os festivais de cinema. É difícil me acostumar com a ideia de assistir filmes na telinha sem as longas conversas com os colegas realizadores no saguão dos cinemas. Os festivais sempre cumpriram um papel importante na promoção dos encontros e na troca entre diversas culturas no mundo inteiro. Muitos deles servem de palco para discutir diversidade, meio ambiente, direitos humanos, política, estética, ética, esperança e amor!
O Festival do cinema brasileiro em Paris é um festival que tem o poder de mexer com a minha memória afetiva, pois foi ele o primeiro festival internacional, a abrir as portas para o meu trabalho no ano de 2005, quando exibi um dos meus primeiros filmes “Vida Nova com Favela”. Naquela época o festival já estava engajado em promover jovens cineastas negros brasileiros. Depois daquele curta foi a vez do meu primeiro longa-metragem “Luto como Mãe” no ano de 2010 ser exibido no charmoso cinema Arlequim. Em 2021 a casa do cinema brasileiro em Paris mais uma vez mostra o seu compromisso com a causa negra ao escolher “Medida Provisória” de Lázaro Ramos como filme de abertura.
Ontem, enquanto assistia ao filme, a primeira palavra que vinha a minha cabeça era ousadia. Lembrei de Regina King em Uma Noite em Miami, Radha Blanck em The Forty-Year-Old Version. Lázaro Ramos como as cineastas negras americanas, fez um excelente trabalho de adaptação cinematográfica da obra teatral “Namíbia, Não”. “Medida provisória” é um filme Afrofuturista com a coragem de quem não tem medo de experimentar. Logo após o fim do filme, fui rapidamente transportado da ficção para o mundo real através de uma notícia cruel. Katlen Matheus uma jovem carioca de 24 (anos) grávida de 4 meses e cheia de planos para o futuro, foi brutalmente assassinada na periferia do Rio de Janeiro em mais uma operação desastrosa da polícia do estado. A ficção de Lázaro Ramos que denuncia a violência contra corpos negros deu rapidamente lugar a dura realidade mundial onde o simples ato de respirar está virando uma utopia para nós negros. Casos como o de George Floyd em 2020 nos EUA e de Adama Traoré em 2016, na França se multiplicam pelo mundo com a onda de supremacia branca que cresce a cada dia com a chegada ao poder de políticos como Bolsonaro, Orbán, Trump, Kurze etc. Tudo isso nos mete medo porque se há algo que nós negros, em todas as partes do mundo, com opiniões e culturas diversas, comungamos, é o medo da morte. As nossas vidas podem se transformar em uma “medida provisória” em questão de segundos. A jovem Katlen só queria caminhar e ir ao encontro de sua avó. O mesmo pode acontecer comigo.
Ou com os nossos filhos. Contudo, algo mudou em junho de 2020. Resolvemos fazer valer a terceira lei de Newton, e o mundo foi sacudido por protestos antirracistas, o número de filmes e séries escritas, produzidas e dirigidas por negros cresceu nos últimos dois anos. É o nosso olhar nas telas humanizando e valorizando a nossa gente, transformando em esperança, luta e beleza as cruéis distopias sangrentas que exibem os nossos corpos como troféus, criando narrativas ousadas e inovadoras, para serem projetadas em grandes palcos como o Festival do cinema brasileiro em Paris.
Luis Lomenha
Doutorando em Arte Contemporânea pelo Colégio das Artes da Universidade de Coimbra – Portugal, Luis Lomenha é autor do livro “Pretos Versus”, Fundador do Cinema Nosso, sócio da produtora Jabuti Studio. Foi indicado ao prêmio "Liberdade para Criar" em Cingapura em 2009, foi vencedor do prêmio "Orilaxé" na categoria Personalidade do audiovisual em 2012, diretor do documentário "Rede Povos da Floresta", exibido no programa "Fantástico" em 2003, Diretor do documentário "Vida Nova com Favela", vencedor do Prêmio ANDI no Festival de Jovens realizadores do Mercosul em 2006; Diretor do documentário "Controle social" exibido no Exxon Mobile Journalism Award de 2007; Diretor do documentário "Uma Mãe como Eu", vencedor do Prêmio Curta o curta, no Festival Internacional de Curtas-Metragens, São Paulo 2008; Diretor do documentário "Luto como Mãe", vencedor do prêmio de melhor longa metragem no Festival Internacional de Cinema de Santa Cruz da Serra Bolívia 2010; diretor das 3 temporadas da série "Minha Rua" Canal Futura, diretor da série “Sob Traçantes “ Canal Futura 2019 , diretor da série “Quem Mandou me Convidar “ Canal Futura 2020, produtor da série Reimagine Rio 2016 , produtor do documentário “El Rey Negro” vencedor do prêmio de melhor direção no festival de Madrid em 2018, é roteirista e produtor do Game Swipow disponível no Google Play e na Apple Store , membro do conselho de diversidade da ABRAGAMES e atualmente está desenvolvendo sua primeira série de ficção para Netflix Brasil, com previsão de estreia para 2023.